O Oscar e a escolha intencional de como encarar a desumanização
Histórias 'podem entreter, abrir nossos corações, mostrar a nós mesmos, lançar uma luz onde estamos e nos fazer pensar para onde estamos indo'
Podemos encarar o Oscar de muitas maneiras - e com muitas críticas. Meu convite é aprender com histórias que recontam as nossas (e estar prontos para sentir algum desconforto).
Essa news foi escrita entre pensamentos, e por isso ela obedece esse formato. Tudo que estiver em itálico é um convite para imaginar, porque a comunicação navega em histórias poderosas (e nas intersecções). Vem comigo.
Filmes e histórias como Zona de Interesse, vencedor do Oscar na categoria Filme Internacional, me trazem um desconforto físico - a mesma dor, sempre no mesmo lugar, por dias - e uma agonia. Um sintoma que aprendi a traduzir: lutar contra a desumanização, qualquer que seja ela, é uma das minhas causas.
O filme de Jonathan Glazer nos aterroriza com a vida bucólica de uma família de classe média alta que decide viver no campo para dar aos filhos a vida que sempre sonharam. É baseado em uma história real.
É um sonho recorrente para muitas (e poucas) famílias, se pensarmos nos indicadores socioeconômicos do Brasil. A maioria não pode escolher onde morar nem como viver. Imaginar para quem desconhece o amanhã é uma audácia, disse Carolina Maria de Jesus.
Rudolf Höss, o patriarca da família, sonha ao custo do extermínio da vida de milhares. Höss é o comandante encarregado do campo de Auschwitz em Oświęcim (Polônia), onde mais de um milhão de judeus foram assassinados. Para deslanchar na carreira, ele sabe que precisa aumentar a produtividade da indústria para incinerar pessoas. É uma escolha. A casa, onde ele vive com a família, divide o muro com o campo de concentração.
Quantos são os muros que nos dividem e que cada um de nós aceita sem perceber ou questionar?
A desumanização não aconteceu com o advento da câmara de gás 2.0. Ela foi sendo plantada e cultivada em camadas, com recursos humanos e financeiros de uma máquina de desinformação.
Nós somos um novo experimento da máquina de desinformar, que segue a mesma estratégia com novas tecnologias: dividir para conquistar. Este ano o Fórum Econômico Mundial elegeu a desinformação como o principal risco global a curto prazo ; e, a longo prazo, as mudanças climáticas. A gente precisa sempre pensar nela quando estivermos pensando em como contar histórias.
Convido você a rever/ver/imaginar uma das cenas do longa: a matriarca da família está com amigas na casa que sempre sonhou com uma fofoca perturbadora: o cheiro das famílias judias. Lembrei-me de outro vencedor do Oscar, O Parasita, onde o cheiro é juiz.
O preconceito vive e ganha musculatura na repulsa por cheiros e, assim, por pessoas. Também está no nome que se dá ao lar de alguém. Na ideia desumana chamada meritocracia.
“Quanto mais nos enxergamos como pessoas que vencem pelo próprio esforço e que são autossuficientes, menos provável será que nos preocupemos com o destino de quem é menos afortunado que nós”, escreveu Michael Sandel.
Voltemos ao filme e ao discurso do diretor, Glazer.
"Todas as nossas escolhas foram feitas para refletir e nos confrontar no presente. Não para dizer 'olha o que eles fizeram no passado', mas para olhar o que fazemos hoje. Nosso filme mostra onde a desumanização nos leva em seu pior" (em tradução livre)
Repito: 'todas as nossas escolhas'. É a escolha intencional de como você vai contar uma história para provocar reflexão (e todas as outras muitas escolhas para apoiar a grande mensagem) e alcançar a mudança esperada.
Uma boa história pode mudar a vida de alguém. Mas ela pode mais, como disse o cineasta Steven Spielberg em seu discurso no Oscar: "Filmes (histórias) podem fazer mais do que nos entreter, eles podem abrir nossos corações uns para os outros, mostrar a nós mesmos, lançar uma luz onde estamos e nos fazer pensar para onde estamos indo."
Como você e sua organização têm contado as histórias poderosas que certamente moram aí? Conta para mim? Pode simplesmente responder a esse email ou escrever para thais@fala.art.br
🤔 Você tem um plano e uma estratégia para…
… 2024.
É o ano da democracia, diz The Economist: 55 países vão às urnas em todo o mundo, são mais de 2 bilhões de pessoas decidindo quem as representará. É também o ano de combate à desinformação, à proteção da integridade eleitoral e como o meio ambiente vem estrategicamente sendo usado na disputa contra a democracia. Em maio, vou contar do nosso projeto premiado Mentira Tem Preço (a gente ganhou o prêmio de impacto social, obrigada pelo voto!!!) na conferência global da Unesco. Se estiver por lá, me dá um alô!
…. 2025.
O Brasil vai sediar a COP30. Qual é a conversa que você ou sua organização querem pautar ou levar para a COP?
… 2026.
São as nossas eleições presidenciais. Para imaginar o futuro, precisamos estar atentos ao presente. Aqui o convite é para conhecer o Projeto 2025, do grupo de reflexão conservador da Fundação Heritage para uma administração Trump. Diz o documento: "O extremismo ambiental é decididamente anti-humano... o petróleo e o gás natural não são um problema ambiental". Essa é a mensagem que a sociedade vai receber.
O New York Times resumiu a agenda assim: "Mais perfuração, menos energia limpa" . Como o movimento de extrema direita no Brasil se inspira e bebe do movimento americano, podemos esperar muito nas próximas eleições (de 2024, depois 2026).
Tem mais
Para ler agora: O seu poder de análise, do The Forge.
Para ver com calma: a atuação de três mulheres brilhantes
Emma Stone, em Pobres Criaturas.
Sandra Huller, em Anatomia de Uma Queda
Lily Gladstone, em Assassinos da Lua das Flores
Curtiu a nossa newsletter?
Então ajude a a gente a espalhar :)
🤩 Utilidade pública
Letterboxd: é seu planner (ou rede social) sobre filmes. Já pensou em montar a sua lista?
Boas histórias não servem somente para entreter e divertir o público ao meu ver, por mais que muitas vezes não concorde com a maioria das escolhas dos filmes e assim como as das demais categorias de Hollywood, por ser mais parcial influenciada pelos estúdios e agora pelas plataformas, do que baseadas na opinião dos críticos especializados. De uma coisa é consenso filmes como o Oppenheimer e o zona de interesse servem para nós refletirmos Thaís sobre como nós chegamos a esse mundo hiperconectado e ao mesmo tempo entender a ascensão do populismo de extrema-direita. Ao mesmo tempo assisti-los é um caminho para construir pontes e ao mesmo tempo futuramente construir caminhos para um mundo menos desigual para todos nós vivermos, mesmo que o resultado dessa mudança de forma concreta seja somente em outra encarnação.